terça-feira, 23 de maio de 2017

Direita e Esquerda

Há quem diga que falar em esquerda e direita é besteira. Eu discordo, afinal rótulos são extremamente práticos, e não é porque as pessoas confundem os termos que eles se tornam inúteis.

O argumento de quem acha esquerda e direita termos inúteis é que esses lados políticos mudaram completamente desde que foram criados. Por exemplo, durante a Revolução Francesa, os monarquistas eram considerados de direita, enquanto a esquerda era constituída pelos... liberais! Ora, os liberais (e os seus sucessores, os malditos neo-liberais!!!) são considerados hoje como o supra-sumo da opressão desalmada, do capitalismo selvagem de direita, portanto os conceitos de esquerda e direita mudaram totalmente, portanto esses conceitos seriam de pouca ou nenhuma utilidade.

Não vou negar que os termos provocam confusão -- porque a política é confusa  ̶e̶ ̶b̶u̶r̶r̶a̶  no geral --, mas ainda assim eles tem utilidade se forem usados para fazer uma distinção bem específica: a econômica. Direita e esquerda deveriam apontar para o modo de se pensar a economia. A direita adere a um pensamento que deseja a liberdade econômica, enquanto esquerda se filia ao controle da economia para o bem comum.

Direita e esquerda NÃO DEVEM descrever o espectro social (ordem vs. liberdade) por motivos bem simples. Existe autoritarismo em países considerados de esquerda (Cuba e Venezuela, que interferem na economia todo o tempo) e em ditaduras que seguem a cartilha liberal, considerada de direita (e o Chile de Pinochet, que por incrível que pareça, não intervinha na economia apesar de toda a censura às liberdades individuais). O contrário também ocorre: existem países que respeitam liberdades individuais consistentemente, não interferem na economia e, geralmente, são considerados de direita (Nova Zelândia e Irlanda) e outros que respeitam essas mesmas liberdades e ainda assim interferem pesadamente na economia e que são considerados de esquerda (França ou Dinamarca).

Também não se deve utilizar esquerda e direita para descrever posturas conservadoras e progressistas. Há quem defenda o casamento gay e liberação das drogas na direita e há quem defenda a proibição destes na esquerda. 

(No entanto, vale ressaltar que existe um entendimento muito popular e completamente errado sobre o que é conservadorismo. Se você, meu desditoso leitor, deseja entender o assunto, leia Edmund Burke -- o Pai do Conservadorismo.)

(Não, o pai do conservadorismo não é o Bolsonaro. Na verdade, Bolsonaro não é nem sequer um conservador, que dirá um conservador burkeano. Aliás, essa injustiça que fazem com os verdadeiros conservadores é uma coisa que me irrita profundamente, portanto tá aí uma boa dica caso você, por qualquer motivo, queira me ver zangado.)

Portanto, se você é de direita, a sua ideia de economia tende a se voltar para o indivíduo, a livre-iniciativa e a liberdade de escolha; se você é de esquerda, a sua ideia de economia tende a se voltar para o coletivo, para o bem comum e para bens de uso público.

Mesmo para um libertário que foi até as últimas consequências -- um anarquista -- existe uma diferença entre esquerda e direita. Para um anarco-comunista ou anarco-sindicalista, os meios de produção são coletivos, portanto é evidente como se tratam de ideologias de esquerda. Um anarcocapitalista que tende a esquerda idealiza bens públicos que não são do estado, mas de responsabilidade de todos; em geral, trata-se de recursos naturais, como florestas, praias, rios, lagos, etc (Murray Rothbard mantinha essa posição). Por outro lado, um anarcocapitalista de direita não vê qualquer problema em um indivíduo se apropriar de rios, lagos, florestas e usá-los conforme o seu interesse -- desde que este não provoque dano a outros, afinal, isso violaria o princípio da não-agressão, uma das bases do anarcocapitalismo.

Se quiser entender melhor como funciona uma classificação mais moderna de posições de esquerda e direita, autoritárias e libertárias, recomendo o site Political Compass: www.politicalcompass.org (o teste está disponível em português).

sábado, 20 de maio de 2017

Bússola Política

Recentemente eu refiz o teste do site Political Compass e o resultado mudou drasticamente. (Não que eu concorde com o resultado, mas acho o teste divertido.)



Se quiser fazer o teste, eis o link:
 http://www.politicalcompass.org/test/pt-br


Eu sempre gostei daquela ideia maravilhosa de que "eu sou eu, o sinhô é o sinhô", e que as escolhas dos indivíduos devem ser respeitadas desde que não violem o direito dos outros indivíduos. Pessoas adultas NÃO devem ser tratadas como crianças, por mais que você, meu nobilíssimo leitor, ache-se superior as "massas mal banhadas". Portanto sempre estive no espectro libertário do plano. Em regra, eu desconfio da intromissão do estado, especialmente em matéria moral; também acho estúpida a ideia de que problemas se resolvem fazendo leis. Isso não mudou e dificilmente vai mudar.

No entanto, eu saí da esquerda e entrei na direita desde o último teste. Eu continuo praticamente o mesmo: continuo desejando um mundo mais justo. Continuo desejando o melhor para as pessoas e gostaria que elas, independentemente de quem sejam, tenham oportunidades iguais, no que for possível.


O xis da questão para mim é: será que a esquerda ajuda mais os pobres do que a direita? E a conclusão a qual eu tenho chegado é um NÃO. 
Porém não pretendo elaborar as minhas razões aqui. Isso fica para outra postagem.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O Choro é Livre

Dilma Rousseff chorou. Janaína Paschoal chorou. José Eduardo Cardozo chorou.

Não acredito no choro do Cardozo, mas acredito na sinceridade do choro da Janaína. Fico pensando se é parcialidade minha.

No choro da Dilma eu creio. Ela é incompetente e irresponsável, mas não acho que alguém diga que é fingida — talvez por isso seja péssima política.

Aconteça o que acontecer, a única coisa que parece certa é que o choro é livre.




quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Super Homem Macaco World

Esses dias resolvi terminar um projeto besta que comecei. Um jogo sobre uma das maiores lendas da interwebs brasileiras, o Homem Macaco.

A história do jogo é basicamente esta:


O Homem Macaco!

Muitos ouviram falar do misterioso 
"Rap do Homem Macaco (Sem Alma e Sem 
Coração)". Mas poucos sabem que esse 
rap na verdade fala do sistema e do 
capitalismo selvagem! 

Composto pelo grande poeta e skatista
Chorão, esse rap fala do sistema 
que não nos permite ser quem somos! 
Ainda que voce fuja para a 
floresta, para viver das coisas que a 
natureza dá, no meio dos animais e 
das ervas, o sistema o perseguirá!!! 
Se olhar para trás, lá estará ele 
gritando bolado, para pegar, 
rasgar e matar!!! 

Vamos acompanhar a jornada do Homem 
Macaco, enquanto ele espalha opressão 
contra os pobres, os jovens 
sonhadores, os indígenas e muçulmanos 
com sua mala cheia de dinheiro sujo!!!


Para quem quiser conferir esse maravilhoso monumento a arte moderna dos games politicamente engajados, aí embaixo estão os links para download. Divirta-se:







(Créditos a Matheus Bonela, que participou da criação e, claro, ao pessoal que fez o Supertux, que na realidade é a base do jogo. Nós só mudamos os sprites, as imagens e os sons.)


sábado, 6 de agosto de 2016

Escolha de Música para a Abertura dos Jogos Rio 2016


Texto escrito para o site Lullavie, traduzido e adaptado.

Foto: Marco Djurica/Reuters
Os artistas e músicas escolhidas para a abertura das Olimpíadas Rio 2016 foram extraordinários. Essa boa escolha contribuiu para o charme do espetáculo, apesar da dúvida que pairava sobre o sucesso da cerimônia de abertura; o cenário complicado dentro do Brasil justificava essa hesitação.

Acredito que a música foi o destaque da cerimônia; grandes clássicos foram tocados, como Garota de Ipanema e Aquarela do Brasil. No entanto, como um brasileiro que ama música, é difícil de não pensar na relevância da música brasileira para o resto do mundo. Atualmente, não é muita essa relevância, mas no passado — especialmente nos anos 60 — o Brasil era um ponto luminoso de boa música. Tom Jobim tomou o mundo de assalto com a sua Garota de Ipanema, fazendo conhecida de todos a mistura entre samba e jazz conhecida como bossa nova. Outros nomes como Carmen Miranda, Ary Barroso e Mutantes também se tornaram conhecidos do grande público.



O fato que a música brasileira perdeu uma grande parte da sua força é notório na cerimônia de abertura do Rio 2016. Esses grandes clássicos do passado foram os destaques, não as músicas mais recentes. No entanto, isso não significa que não haja boa música e bons músicos no Brasil na atualidade. Se você quiser aproveitar o embalo das Olimpíadas e ouvir a algumas músicas do Brasil, aqui estão minhas recomendações.




Seu Jorge: Se você deseja algo tipicamente brasileiro, Seu Jorge tem brasilidade de sobra. Eu recomendo o álbum Músicas Para Churrasco; se você deseja algo mais familiar, eu recomendo The Life Aquatic Sessions, o qual é o meu álbum favorito dele, uma maravilhosa reinterpretação de algumas das melhores músicas de David Bowie.



Maria Gadú: Ela é do tipo de artista que lida tão bem com música nova quanto velha. Ela tem tem muitas músicas em colaboração com os dinossauros da música brasileiras, como Caetano Veloso e Gilberto Gil (ambos presentes na cerimônia de abertura de Rio 2016, na qual eles cantaram Isto Aqui, O Que É?). Por fim, eu recomendo ouvir o primeiro álbum dela, conhecido por Shimbalaiê.

domingo, 5 de outubro de 2014

Jogo e Arte

Muitos jogos marcaram a minha vida por serem maravilhosos e fantásticos, mas se fosse para eu citar três, seriam: Chrono Trigger, Final Fantasy VI e Majora's Mask — três verdadeiras obras de arte.

Talvez você, ignorante leitor, queira dizer: "Mas videogame não é arte! É só um passatempo infantil". Para você, eu digo: repense. Será que você nunca parou pra pensar na inegável beleza das composições de jogos como Super Mario Bros 3?





Agora que seus argumentos foram destroçados pelo talento do Meine Meinung, vamos ao que interessa.




The Legend of Zelda: Majora's Mask

Por algum motivo, algum tempo atrás me deu vontade de jogar Majora's Mask. Aliás, esse motivo tem nome: Fierce Deity Mask, o item supremo do jogo. A ideia era enfrentar o último mestre do jogo, Majora, com ela.

Foi engraçado. Parece que você é o vilão e Majora é o mocinho em apuros, sem chances de vencer. A última batalha fica extremamente fácil. Ridiculamente fácil. Enfim, eu fiz o que eu queria fazer, completei o meu objetivo, etc. E, jogando o jogo, acabei relembrando o motivo pelo qual eu sou imensamente, titanicamente, gargantuanamente apaixonado por ele.



Arte oficial de The Legend of Zelda: Majora's Mask


Hora de rasgar seda: é absolutamente INCRÍVEL ver como a jogabilidade e a história do jogo ainda parecem únicas, mesmo numa época onde quase tudo parece estar sendo repetido e reutilizado em matéria de videogames. Um mundo em sandbox não era novidade (para o ignorante leitor: sandbox, em videogames, quer dizer que o jogo te dá liberdade de explorar [1]). Mundos do tipo sandbox são a marca registrada dos jogos Zelda, o seu legado para os aficionados; mas hoje em dia eles não têm nada mais de único, embora seja ainda uma sensação familiar e fantástica jogar um novo Zelda e ver uma velha sandbox com elementos novos. Não é bem assim com Majora's Mask. Majora's Mask não tem muito de familiar. Majora's Mask é pura urgência e perigo, tem muito de bizarro e de extravagante, mas quase nada de conforto ou familiaridade.

Bem e mal, morte e vida, amizade e solidão, dor e alegria, tudo isso um mundo retorcido, baseado naquele de Ocarina of Time — outro ótimo jogo, mas é só um bom moço bem comportado perto do seu fabuloso sucessor. Majora's Mask tem uma beleza e profundidade que é difícil de expressar em palavras e difícil de imaginar em um jogo Zelda. No entanto, eu conheço um texto que consegue resumir o jogo de uma maneira sublime, embora com um ponto de vista bem particular com o qual eu não estou 100% de acordo (porque eu sou um ser infeliz e implicante que nunca está 100% de acordo com nada).


http://www.damnlag.com/power-of-majora-mask/

Infelizmente, o artigo é em inglês.




Chrono Trigger e Final Fantasy VI

Pois então. Dias atrás, em uma discussão que eu tive com colegas de fórum em um canal do IRC, acabamos debatendo jogos de Super Nintendo e, inevitavelmente, os nomes Chrono Trigger e Final Fantasy VI foram mencionados. Claro, é impossível esquecer Super Mario World, Donkey Kong Country, Rock 'n Roll Racing, mas vou focar os dois fantásticos JRPGs supracitados. Eles são os meus jogos preferidos no console e estariam no meu top 10 jogos, se algum dia eu fizer uma lista.

Chrono Trigger e Final Fantasy VI são jogos praticamente impecáveis, disso há pouca dúvida. É só conferir as notas que a crítica especializada deu aos jogos. Um esforço considerável foi gasto da parte da Square (hoje Square Enix) para a confecção dos dois, o que fica evidente em Dancing Mad, a música épica de Final Fantasy VI ou nos quinze finais diferentes de Chrono Trigger.





Para a criação de Chrono Trigger, foi reunido um time de artistas talentosíssimos, que foi chamado inclusive de Dream Team: Akira Toriyama (artista criador de Dragon Ball), Hironobu Sakaguchi (designer e um dos criadores da série Final Fantasy), Nobuo Uematsu (compositor da trilha sonora de série Final Fantasy, Romancing SaGa e Super Smash Bros. Brawl), Yuji Horii (designer da série Dragon Quest). A participação de Akira Toriyama explica a similaridade entre certos personagens de Chrono Trigger e Dragon Ball: Crono e Goku, Magus e Vegeta, Lucca e Bulma; e a junção de artistas de Dragon Quest e Final Fantasy, grandes rivais, as duas maiores e mais populares séries de RPG do Japão, explica a magnitude do evento — Chrono Trigger é fruto do encontro dos melhores profissionais dos jogos no glorioso Japão. Chrono Trigger é um monumento a capacidade artística humana. Portanto, meu mal banhado leitor, se você se considera um ser humano minimamente educado e civilizado, dê seu jeito e vá jogar Chrono Trigger. IMEDIATAMENTE.

Se eu tivesse de destacar algum aspecto de Chrono Trigger, eu não pensaria duas vezes em que dizer: estética. Chrono Trigger é o ponto máximo da beleza no Super Nintendo. Não perde em nada para jogos como Donkey Kong ou Yoshi's Island nesse quesito. O jogo é projetado para fluir bem, para imergir o jogador em uma atmosfera agradável; com composições musicais e ambientes muito bem casados, um sistema de batalha fácil e dinâmico e um sistema de eras que proporciona uma jogabilidade totalmente nova para a época.




Dragon Tank no Castelo de Guardia

Não vou ser desonesto e dizer que a história e os personagens de Chrono Trigger são profundos e elaborados. São até bem rasos. No entanto, isso se encaixa bem com a estética leve e casual do jogo, mais adequada para jogadores casuais de RPGs; não foi a toa que Chrono Trigger foi a minha droga de entrada para o mundo dos RPGs, mas em geral, jogadores hardcore de RPGs não ficam muito contentes com pouca dificuldade e a história breve de Chrono Trigger. Pode-se zerar o jogo em 30 horas, enquanto Final Fantasy VI requer, no mínimo, o dobro de tempo. 


Compare, por exemplo, personagens como Celes e Shadow, que tem uma história de vida francamente depressiva, com Marle e Lucca, duas personagens sem muita sofisticação. Celes vive perseguida pela solidão e pela traição; ela mesma pensa em suicídio, algo que eu nunca havia visto em um jogo até então; Shadow é um mercenário ganancioso sem apego moral, mas que carrega a culpa de ter abandonado um amigo, parceiro no crime, no momento em que ele mais precisava; depois, até mesmo por causa dessa culpa, abandonou sua mulher e sua filha porque não conseguia deixar de ser quem ele era: um criminoso. Por outro lado, Chrono Trigger é cheio de estereótipos: Marle é típica menina-moleque, a princesa que não gosta da vida no castelo; Lucca é a típica nerd; não que as duas personagens se resumam a isso, mas também não são muito mais do que isso.

Os elementos da história de Chrono Trigger são, eu repito, casuais: portais, máquinas do tempo, dinossauros, robôs, uma mistura de elementos de ficção científica barata. Chrono Trigger tem essa atmosfera brincalhona. Final Fantasy VI tem temas mais sérios, como ruína e morte, loucura e traição. Para fazer uma comparação chucra: Se Final Fantasy VI for um Cisne Negro, Chrono Trigger é um Avatar. Se Chrono Trigger for De Volta Para o Futuro, Final Fantasy VI é Apocalipse Now.

Como eu disse antes, os dois jogos são diametralmente opostos. A excelência dos dois jogos está em lugares bem distintos, Chrono Trigger na estética simples e bela, Final Fantasy VI na profundidade. E, se Chrono Trigger falha na profundidade, Final Fantasy falha por vezes na estética — são focos distintos. Os dois são obras primas, cada um na sua especialidade. Porém não vou mentir aqui: Final Fantasy VI sempre terá um lugar no meu coração, mas Chrono Trigger é meu amor eterno (S2).


E para terminar com chave de ouro: Corridos of Time, minha música preferida de Chrono Trigger, tocada pelo Meine Meinung.








Eu tinha dito algo sobre ser sucinto, né? Eu menti.


quarta-feira, 16 de abril de 2014

Música Pseudointelectual


Alguns dias atrás, enquanto ouvia uma música de Luis Gonzaga no carro, eu comentei com um colega o quanto eu acho Luis Gonzaga genial e fantástico. A música em questão era "Cigarro de Palha".

Meu cigarro de paia
Meu cavalo ligeiro
Minha rede de maia
Meu cachorro trigueiro 

Quando a manhã vai clareando
Deixo a rede a balançar
No meu cavalo vou montando 
Deixo o cão a vigiar

Cendo um cigarro de vez em quando 
Pra esquecer de me alembrar 
Que só me falta uma bonita morena 
Pra mais nada me faltar


Letra excelente, não? Eu a acho fantástica.


Ao que o colega respondeu que, de verdade, quando ele pensa em um músico ou artista inteligente, ele se lembra do Renato Russo.

Eu quase vomitei as minhas tripas, mas não disse nada.

Embora hoje eu sou um velho implicante, mas já fui adolescente e, como todo adolescente da época, eu gostava de Legião Urbana (embora Renato Russo já estivesse morto há algum tempo então). Naquela época eu pensava que Legião Urbana era uma das melhores bandas do Brasil e que Renato Russo fosse um "genho"; no entanto, qualquer pessoa que pense um pouco sobre a música da banda percebe que as letras são pseudointelectuais, burras mesmo. Calma, não me crucifique. Deixe-me explicar:




Parece cocaína, mas é só tristeza
Talvez tua cidade

Muitos temores nascem do cansaço e da solidão 
E o descompasso, e o desperdício, 

Herdeiros são agora da virtude que perdemos 
Há tempos tive um sonho: não me lembro, não me lembro 

Tua tristeza é tão exata e hoje o dia é tão bonito 
Já estamos acostumados a não termos mais nem isso 

Os sonhos vêm e os sonhos vão, o resto é imperfeito


Repare no naipe deste lixo. Contemple, caro leitor. 


Você deve conhecer essa música -- a não ser que você more em Marte ou seja algum adolescente ranhento --, chama-se "Há Tempos". Ela usa palavras que um homem do sertão como Luiz Gonzaga nem sonharia em usar em suas músicas, por exemplo: "virtude" e "descompasso". Porém, inteligência não se mede por número de palavras sofisticadas que uma pessoa é capaz de usar. Inteligência é compreensão; é ser capaz de ler o interior das coisas e extrair sua essência. (é o nome deste blog, por sinal: a palavra inteligência refere-se a "Intus Legere", termo latino que quer dizer, grosso modo, intuição, ler o interior das coisas.)

De todo modo, o que exatamente há de inteligente na letra de "Há Tempos"?

Vamos forçar um pouco e supor que o autor esteja falando (de um jeito bem estranho e desconexo) da decadência das virtudes humanas nos tempos atuais ou do desespero que leva até mesmo a esquecer os sonhos, blá blá blá, nhem nhem nhem. Maneiríssimo. Porém o que a TALVEZ TUA CIDADE tem a ver com isso? E o que é que parece cocaína, mas é só tristeza? O amor, a vida, o universo? Tudo o mais?  Como os sonhos vêm e vão para o eu lírico se ele já não parece ter mais o seu sonho? Perguntas que ficarão eternamente sem resposta não só porque o inditoso autor jaz morto, mas também porque foram feitas para parecer inteligentes e não para de fato serem compreendidas.

Há um eu lírico e há um tu lírico na música. Os dois parecem decadentes e desesperados, a julgar pelas virtudes perdidas. Vamos continuar a partir dessa premissa:



Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes 
Teu grito acordaria não só a tua casa 
Mas a vizinhança inteira 

E há tempos nem os santos 
Têm ao certo a medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem

E há tempos o encanto está ausente 
E há ferrugem nos sorrisos 
Só o acaso estende os braços 
A quem procura abrigo e proteção


Vejamos: o tu lírico demonstra a sua dor, que se pudessem ser expressado por sua voz, despertaria toda a vizinhança. Está certo, a atmosfera da música é de angústia. Depois a letra passa a pregar o fracasso das virtudes (a bondade, a saúde, o encanto, os sorrisos) e dos virtuosos (os santos e os jovens). Até aqui, nenhuma crítica da minha parte; mas logo depois está uma das evidências mais absurdas de o quão ridícula e contraditória uma letra pode ser:



Meu amor! 
Disciplina é liberdade 
Compaixão é fortaleza 
Ter bondade é ter coragem 

(Ela disse)
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa 



PERA. PÁRA.

COMO pode a música passar de um hino ao desespero a um ode à esperança, sem mais nem menos? O sujeito estava deprimido e tudo mais. Falava da decadência das virtudes e, de repente, começa a falar bem delas. Que é isso? Decida-se, mano.

No entanto, se você ouve Legião Urbana há algum tempo e parou para analisar a maioria das letras, deveria saber que esse estilo é típico deles. Eles eram capazes de fazer letras coerentes, por exemplo "Faroeste Caboclo", "Eduardo e Mônica", "Pais e Filhos" e "Vento no Litoral". Por outro lado, eram capazes de um 
pseudointelectualismo lixoso sem par: "Teatro dos Vampiros", ou em "Eu sei", que são um exemplo mor da arte afetada e medonha.

Aliás, outro mau exemplo digno de nota é "Índios". Um monte de estrofes que, sozinhas, fazem sentido, são bonitinhas, mas que no todo fazem pouco sentido. Suponhamos que a música seja uma alusão ao estado do mundo moderno — DE NOVO — em analogia com os índios do passado e sua relação com o homem branco; então que RAIOS o refrão, supostamente a cereja desse bolo, quer dizer? 




Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim

Quando descobri que é sempre só você 
Que me entende do início ao fim. 

E é só você que tem a cura pro meu vício 
De insistir nessa saudade que eu sinto 
De tudo que eu ainda não vi



Como é que o eu lírico passou de um índio roubado a um apaixonado com dor de cotovelo?


Inteligente, né? Não, eu acho forçado.


Melhor parar por aqui. Só para deixar claro, não odeio Legião Urbana nem odeio todas e quaisquer letras incoerentes. Ouço um monte de músicas com letras sem sentido e gosto de um monte de gente que diz um monte de coisa sem sentido, então não costumo reclamar de falta de coerência... como diria Renato Russo, acho que já estamos acostumados a não termos mais nem isso.


Eu disse que eu seria sucinto. Acredite, eu tentei